quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Voo


Dia de chuva nunca foi o meu forte; pelo contrário, baixa uma tristeza sei lá de onde... Saí assim de casa: bem cedinho, numa manhã de domingo, antevéspera de Natal, céu cinza, chuva regando janela de táxi... Fim de ano é normalmente intenso, o consultório não me deixa negar e eu, pessoalmente, não fujo à regra: cansaço de um ano inteiro + balanço do que passou somado à projetos do novo ano que ainda nem começou, mas que teima em invadir geral antes da hora! E lá vai meu coração apertadinho de saudade dos filhotes que já estão longe, mais um punhado de melancolia na bagagem... Deveria ser proibido passar festas de fim de ano sem crianças - especialmente as nossas!

Aeroporto lotado, voo atrasado (ok, só um pouquinho...) e eu pensando que, apesar de tantos avanços tecnológicos, esperar sempre dura uma eternidade. Intolerâncias contemporâneas à parte, finalmente entro no avião e me acomodo com meu kit viagem completo: o jornal do dia, um livro que comecei a ler na véspera e que está me empolgando e uma revista novinha em folha para folhear. Esperança de que, munida assim, as duas horas de avião realmente voassem...

Já no ar, percebo um pequeno de boné e óculos de grau sentado do outro lado do corredor. Um crachá no seu pescoço avisa que está desacompanhado. Ele olha para os lados como quem pede ajuda. Nossos olhares se cruzam e trocamos um sorriso tímido. Então, pergunto se posso ajudar. “Queria saber se aquele banheiro alí da frente é masculino ou feminino...”, ele fala. Explico que é unissex e lá estava eu: kit leitura esquecido no colo e um garoto de 11 anos, empoderado no seu papel de viajante, saboreando aquela autonomia recém-conquistada como ninguém, mesmo que por apenas duas horas!

Olhando com seus olhos de criança, o céu era definitivamente mais que azul, o mundo localizava-se sob nossos pés e o futuro era um infinito de possibilidades! E tinha até espaço para alguma “imperfeição” ou realidade, como preferirem. Ele iria passar as férias apenas com o pai, já que a mãe, vivia  em São Paulo e ficaria por lá. Qualquer semelhança é mesmo mera coincidência nos roteiros da vida!

Onze anos de idade e já aprendendo a conviver com a vida como ela é. Sem dramas. E ele seguia me contando que nem era tão difícil viajar sozinho e descrevia fórmulas que encontrava para afastar possíveis medos e inseguranças. Mas os seus olhos brilharam mesmo ao contar sobre a alegria que sentía na chegada e que, segundo ele, superava qualquer dificuldade. Saí do avião, leve, coração feliz e alimentado de infância – não me refiro a infância do meu mais novo amigo, sentado alí, do meu lado, mas da criança que fui, e que reencontrei saborosamente durante o voo.

Ahhhh, o garoto, ironicamente, como tudo de muito interessante nessa vida, se chamava Gabriel...  Desceu do avião acompanhado da aeromoça e eu, logo atrás. Juro que enxerguei suas asas...    


terça-feira, 27 de novembro de 2012

No divã






A rotina feminina no salão de toda semana e eu me preparando mais uma vez pra tortura mensal da depilação e sempre esperançosa na descoberta de uma técnica menos medieval!!!

Deitada na maca e totalmente entregue ao “humor” da depiladora-carrasca; primeiros pêlos arrancados sem dó e eu, tentando encontrar formas interessantes no teto, talvez algum oxigênio extra no ar que saía do ventilador num dia de calor digno do Saara ou qualquer outra distração que me transportasse instantaneamente dalí!!! De repente, ela pára e fala o quanto acha  incrível a forma como eu fico quieta durante o processo. Olho pra ela com uma cara de interrogação e, juro, tentando prolongar aquela trégua ao máximo. Ela explica que a maioria das suas clientes normalmente ficam inquietas, demonstram desconforto e algumas até gritam. Depois, acrescenta inocentemente e com um tom prazeroso na voz, sua conclusão para a minha “serenidade”: “Você sofre calada, não é?!” Mais que uma pergunta, era uma afirmação...

Pronto! Desfecho suficiente para eu perceber que a tranquilidade da depiladora era inversamente proporcional ao meu recém-desconforto.  Agora, além dos pêlos arrancados, lá estava, mergulhada em um mar de pontos de interrogação; talvez, me dando conta de dores engolidas e não tão digeridas ou talvez nem percebidas! Que medo! E lá estava eu, no meio de um turbilhão, numa cabine de depilação, em uma tarde supostamente inofensiva... Meus mecanismos de defesa deveriam, inclusive, estar em algum lugar paradisíaco, a mil léguas de distância, naquele momento!

Sofrer calada? Como assim?!! Justo eu que me acho mais e mais desbocada a cada dia e, especialmente, pós 40? Pelo visto, desbocada mas nada imune... E, como os insights caem sempre como um raio em nossas cabeças, lembro instantaneamente do livro “Um, nenhum e cem mil”, que estou terminando de ler.

Pirandello conta a história de um tal Moscarda e dos questionamentos que ele passa a ter à partir de uma observação da sua esposa quando esta lhe conta que o nariz dele pendía para a direita quando ele acreditava, desde sempre, que possuía um nariz reto. A minha experiência na tal cabine somada a lembrança do livro e, não precisava de mais nada para acender, ali, bem diante do meu nariz, um super holofote de luz vermelha, intensa e piscante, com uma das frases do autor: ”Assim é... se vos parece”.  

De que forma me enxergam e o quanto que essas versões são dissonantes de quem acredito que sou? Eu me acreditando desbocada, bem resolvida com os sentimentos e alguém conclui que eu sofro calada. Alguém que enxerga mais do que consigo enxergar em mim... Como diz o personagem, é impossível nos ver vivendo. Afinal, o quanto somos invisíveis para nós mesmos? Seguindo nessa trilha, concordo totalmente com Pirandello de que posso ser um, nenhum ou cem mil... Moscarda, euzinha e, provelmente, toda a torcida do Corinthians, vivendo o mesmo dilema!
Salve Pirandello, salve minha depiladora e salve as infinitas possibilidades do ser! Não deu pra vomitar, naquele intervalo de tempo, todo o sofrimento já engolido e não digerido por mim durante anos de vida mas, só em considerar essa possibilidade, garanto que suavizou muita coisa aqui dentro. Depilada por fora e por dentro, ao deitar em uma maca que, numa tarde quente de novembro, foi transformada em divã da melhor qualidade...







quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O Paciente



Esse mês fui assistir uma peça baseada no texto de Steve Sam Lipsyte, traduzido para o português como: O livro de ítens do paciente Estêvão, adaptada por Felipe Hirsch. A apresentação tinha cinco horas de duração, com vinte minutos de intervalo. Confesso que sempre fico muito na dúvida quando me deparo com essas propostas extensas refletindo se todo esse “debruçamento” sobre o tema é realmente necessário.

A peça conta a história de um paciente que vai fazer um check-up de rotina e descobre que sofre, segundo seus médicos, de uma doença incurável e ainda desconhecida. A única certeza que eles têm, é que Estêvão morrerá. O tom cômico permeia os diálogos, suavizando um tema indigesto: Ok, podemos morrer de doenças. Mas podemos também morrer de vida? Uma pergunta que, por si só, necessita de mais de cinco horas de reflexão resolvendo a minha dúvida inicial e provocando um olhar mais apurado sobre escolhas e caminhos.

Durante a apresentação a sensação é a de que a nitidez das nossas referências vai desaparecendo, transformando-se em nuances. Um momento genial para exemplificar é uma cena onde Estêvão conta que tudo na vida se resume nas duas primeiras frases que falou na vida: “Quero barco!” e “Chega!”




O tom é irônico e vem seguido de um suspense e da expectativa de que algo muito profundo seria dito naquele momento. Um  insight do diretor para abalar intencionalmente as certezas de então. Essas duas frases, brilhantes na minha opinião, não seriam efetivamente a síntese  das nossas tentativas de experimentação e de dosagem de medidas confortáveis que nos redimam dessa montanha russa que é o viver? Não são nos pequenos desequilíbrios, nos desconfortos da vida que atingimos o equilíbrio?

Um detalhe que me chamou muito a atenção foi a presença de um aquário no cenário, presente em todas as cenas: ora no centro do palco, ora em um canto qualquer, mas sempre presente. Pequenos peixes circulando em atividade constante e, ao mesmo tempo, contidos naquela realidade imposta. O universo cabendo em um aquário.  Essa percepção potencializada pela afirmação de um dos personagens (“O mundo já calculou o valor potencial da felicidade”) demove mais certezas e propõe um mergulho nas relatividades da vida. A qual aquário pertencemos, afinal? Será que dá para ousar enxergar e até mesmo viver além do que nos impuseram ou do tanto que nos submetemos?

Ao final da peça ficou claro para mim que as cinco horas são realmente necessárias. Não tanto para o desenvolvimento do tema, mas para propor uma experiência, uma contemplação do tanto que negamos no cotidiano por medo, “ausência de tempo” ou incapacidade de enxergar. E a grande certeza que tive de toda essa experiência é que, independentemente dos caminhos trilhados, com os erros e acertos que os validam, morrer de vida é a única coisa que não dá para aceitar...


domingo, 30 de setembro de 2012

Vintage



Ilustração: Natalie Disko


Moda é um enigma delicioso pra mim. Fico pensando nas tendências, no que está por trás de cada proposta, no que é criatividade genuína e no que é mera imitação, etc.  Se alguém puder responder: As coleções seguem  sugestões ( e, aproveitando, gostaria de saber de quem?!) ou é o inconsciente coletivo marcando presença a cada nova coleção? A segunda alternativa foi uma tentativa de"psicologizar" a questão e ficar na minha praia mesmo...rs

Dá pra pensar também no tanto que as propostas fashions são meros reflexos do tempo em que vivemos, cada vez mais veloz, fragmentado e sobrecarregado de vivências e estímulos a que somos submetidos sem a trégua necessária para transformá-los em experiência... Onde fica o espaço para o aperfeiçoamento de quem somos quando a bola da vez é a indústria da imagem de si? Já perceberam que tudo acontece tão rápido que o novo desaparece antes mesmo de envelhecer? E haja déjà vú para preencher o vazio interno e tentar amenizar o cansaço desse existir contemporâneo e sem trégua...

Aliás, que sensação louca essa de nos permitir sentir um passado que nunca existiu... Isso porque esqueço o meu próprio passado, real e necessário para valorizações do vivido e da minha bagagem de vida e, produzo um passado “fake”.  Espontaneidade zero e elaboração de qualquer coisa, zero também.  Fica o vazio, além da saudade de um tempo onde não se tinha tanta obrigação com a originalidade, com a performance. Tempo que nem sei se viví um dia... Talvez mais um déjà vú pra minha coleção...

Ainda pensando na moda, o conceito vintage é, na minha opinião, um golpe de gênio! Ele propõe eternizar um passado que não passou, daqueles imprescindíveis para alimentar a nossa fantasia de futuro e do querer viver! Uma redenção ao pensarmos na nossa condição humana e da necessidade que temos de que algo fique faltando do que se viveu para que possamos continuar desejando... Mesmo admitindo que atualmente, compreender esse objeto desejável como algo não material, impossível de ser precificado e comprado, seja uma tarefa para Hércules nenhum botar defeito!
  
Ok, novos objetos, conceito interessante mas gosto mesmo é das pessoas vintage!  Essas que não se contentam com classificações e contemplam a vida corajosamente, lapidando momentos oportunos e usando o tempo a seu favor. Que se eternizam por valorizar justamente o que o status quo mais abomina: O tempo livre!  Povo raro esse, eu sei! Mas, tudo que é raro, vale ouro...

sábado, 25 de agosto de 2012

Mais do mesmo?

Terminar de ler um livro bom é sempre um sofrimento pra mim. Fica a saudade dos ambientes, do enredo e, principalmente, dos personagens que, com o tempo, se tornaram íntimos. “A elegância do ouriço” de Muriel Barbery, presente de uma amiga querida, me presenteou além. Tem um discurso original que surpreende a cada capítulo. Não foi amor a primeira vista, não. Foi me conquistando aos poucos, me surpreendendo e, quando me dei conta, estava completamente seduzida pela narrativa e pelo fluxo dos acontecimentos contidos ali.
Quando já tinha perdido as esperanças de gostar do livro, me deparei com uma frase que me capturou: “(...) decoramos nossos interiores com redundâncias”. Uau! Me fez pensar instantaneamente no quanto seguimos, ao longo da vida, colecionando padrões de sentimentos, formas de viver e de perceber o mundo, sem muita certeza da sua utilidade, tal como fazemos com os objetos. Muito do mesmo; talvez com alguma variação de formas e cores... Mas e aí, o que fazemos com tantos conteúdos repetidos? Afinal, o que é cópia e o que é autoral em nossas vidas?
Sigo copiando o outro, me vestindo como esperam que me vista, me comportando como gostariam que me comportasse, vivendo uma vida “normal”, “adequada”, etc, etc. Dessa forma consigo enganar muita gente mas infelizmente (ou felizmente!!!) não consigo agradar a todos, muito menos a mim mesma! Algo me faz recordar diariamente da farsa que me tornei, e bate insegurança, e então dependo do outro para me aprovar e me dizer quem sou, e minha vida vai acelerando vertiginosamente por estes descaminhos.
Que ilusão é essa - a de que possuir em dobro pode nos fazer mais felizes?  A repetição pode até nos iludir (e o faz!) porque promete amenizar a insegurança: trilhar caminhos conhecidos não deveriam dar a garantia de onde estamos pisando e ainda permitir que estejamos em movimento? Buscamos e buscamos, incessantemente, algo que nem sabemos o que é, mas que precisamos para sanar o vazio interno, maior a cada dia. Socorro! Morro de tédio só de pensar nesse caminho linear, sem obstáculos que possam efetivamente me desafiar para além de mim.
Afinal, o prazer não consiste justamente na efemeridade e singularidade que o constituem? Enquanto sentimos prazer, de qualquer espécie, a última coisa que pensamos é no medo da sua ausência; ao menos naquele instante! E podemos aproveitar o que temos sem a concorrência do que ainda não temos e sem o medo aterrorizante da falta. É a inteireza exigida por um instante tão pleno quanto fugaz. Um instante inédito que propõe justamente desvendar o desconhecido. Não passa pela escolha racional, é sentimento na veia e ponto!
Por isso, buscamos repetir essa sensação a qualquer custo, desejando eternizá-la. Criamos estratégias, procuramos onde não mais existe, damos voltas atrás do próprio rabo quando um mundo de possibilidades está bem diante(ou dentro) de nós e não ousamos enxergar. Quanta ironia! Optamos por nos perder em caminhos conhecidos porque temos medo, muito medo, de nós mesmos...