A
rotina feminina no salão de toda semana e eu me preparando mais uma vez pra
tortura mensal da depilação e sempre esperançosa na descoberta de uma técnica
menos medieval!!!
Deitada
na maca e totalmente entregue ao “humor” da depiladora-carrasca; primeiros pêlos
arrancados sem dó e eu, tentando encontrar formas interessantes no teto, talvez
algum oxigênio extra no ar que saía do ventilador num dia de calor digno do
Saara ou qualquer outra distração que me transportasse instantaneamente dalí!!!
De repente, ela pára e fala o quanto acha
incrível a forma como eu fico quieta durante o processo. Olho pra ela
com uma cara de interrogação e, juro, tentando prolongar aquela trégua ao
máximo. Ela explica que a maioria das suas clientes normalmente ficam inquietas,
demonstram desconforto e algumas até gritam. Depois, acrescenta inocentemente e
com um tom prazeroso na voz, sua conclusão para a minha “serenidade”: “Você
sofre calada, não é?!” Mais que uma pergunta, era uma afirmação...
Pronto!
Desfecho suficiente para eu perceber que a tranquilidade da depiladora era
inversamente proporcional ao meu recém-desconforto. Agora, além dos pêlos arrancados, lá estava, mergulhada
em um mar de pontos de interrogação; talvez, me dando conta de dores engolidas
e não tão digeridas ou talvez nem percebidas! Que medo! E lá estava eu, no meio
de um turbilhão, numa cabine de depilação, em uma tarde supostamente
inofensiva... Meus mecanismos de defesa deveriam, inclusive, estar em algum
lugar paradisíaco, a mil léguas de distância, naquele momento!
Sofrer
calada? Como assim?!! Justo eu que me acho mais e mais desbocada a cada dia e,
especialmente, pós 40? Pelo visto, desbocada mas nada imune... E, como os
insights caem sempre como um raio em nossas cabeças, lembro instantaneamente do
livro “Um, nenhum e cem mil”, que estou terminando de ler.
Pirandello
conta a história de um tal Moscarda e dos questionamentos que ele passa a ter à
partir de uma observação da sua esposa quando esta lhe conta que o nariz dele
pendía para a direita quando ele acreditava, desde sempre, que possuía um nariz
reto. A minha experiência na tal cabine somada a lembrança do livro e, não
precisava de mais nada para acender, ali, bem diante do meu nariz, um super
holofote de luz vermelha, intensa e piscante, com uma das frases do autor: ”Assim
é... se vos parece”.
De
que forma me enxergam e o quanto que essas versões são dissonantes de quem
acredito que sou? Eu me acreditando desbocada, bem resolvida com os sentimentos
e alguém conclui que eu sofro calada. Alguém que enxerga mais do que consigo enxergar
em mim... Como diz o personagem, é impossível nos ver vivendo. Afinal, o quanto
somos invisíveis para nós mesmos? Seguindo nessa trilha, concordo totalmente
com Pirandello de que posso ser um, nenhum ou cem mil... Moscarda, euzinha e,
provelmente, toda a torcida do Corinthians, vivendo o mesmo dilema!
Salve
Pirandello, salve minha depiladora e salve as infinitas possibilidades do ser! Não
deu pra vomitar, naquele intervalo de tempo, todo o sofrimento já engolido e
não digerido por mim durante anos de vida mas, só em considerar essa
possibilidade, garanto que suavizou muita coisa aqui dentro. Depilada por fora
e por dentro, ao deitar em uma maca que, numa tarde quente de novembro, foi
transformada em divã da melhor qualidade...