terça-feira, 27 de novembro de 2012

No divã






A rotina feminina no salão de toda semana e eu me preparando mais uma vez pra tortura mensal da depilação e sempre esperançosa na descoberta de uma técnica menos medieval!!!

Deitada na maca e totalmente entregue ao “humor” da depiladora-carrasca; primeiros pêlos arrancados sem dó e eu, tentando encontrar formas interessantes no teto, talvez algum oxigênio extra no ar que saía do ventilador num dia de calor digno do Saara ou qualquer outra distração que me transportasse instantaneamente dalí!!! De repente, ela pára e fala o quanto acha  incrível a forma como eu fico quieta durante o processo. Olho pra ela com uma cara de interrogação e, juro, tentando prolongar aquela trégua ao máximo. Ela explica que a maioria das suas clientes normalmente ficam inquietas, demonstram desconforto e algumas até gritam. Depois, acrescenta inocentemente e com um tom prazeroso na voz, sua conclusão para a minha “serenidade”: “Você sofre calada, não é?!” Mais que uma pergunta, era uma afirmação...

Pronto! Desfecho suficiente para eu perceber que a tranquilidade da depiladora era inversamente proporcional ao meu recém-desconforto.  Agora, além dos pêlos arrancados, lá estava, mergulhada em um mar de pontos de interrogação; talvez, me dando conta de dores engolidas e não tão digeridas ou talvez nem percebidas! Que medo! E lá estava eu, no meio de um turbilhão, numa cabine de depilação, em uma tarde supostamente inofensiva... Meus mecanismos de defesa deveriam, inclusive, estar em algum lugar paradisíaco, a mil léguas de distância, naquele momento!

Sofrer calada? Como assim?!! Justo eu que me acho mais e mais desbocada a cada dia e, especialmente, pós 40? Pelo visto, desbocada mas nada imune... E, como os insights caem sempre como um raio em nossas cabeças, lembro instantaneamente do livro “Um, nenhum e cem mil”, que estou terminando de ler.

Pirandello conta a história de um tal Moscarda e dos questionamentos que ele passa a ter à partir de uma observação da sua esposa quando esta lhe conta que o nariz dele pendía para a direita quando ele acreditava, desde sempre, que possuía um nariz reto. A minha experiência na tal cabine somada a lembrança do livro e, não precisava de mais nada para acender, ali, bem diante do meu nariz, um super holofote de luz vermelha, intensa e piscante, com uma das frases do autor: ”Assim é... se vos parece”.  

De que forma me enxergam e o quanto que essas versões são dissonantes de quem acredito que sou? Eu me acreditando desbocada, bem resolvida com os sentimentos e alguém conclui que eu sofro calada. Alguém que enxerga mais do que consigo enxergar em mim... Como diz o personagem, é impossível nos ver vivendo. Afinal, o quanto somos invisíveis para nós mesmos? Seguindo nessa trilha, concordo totalmente com Pirandello de que posso ser um, nenhum ou cem mil... Moscarda, euzinha e, provelmente, toda a torcida do Corinthians, vivendo o mesmo dilema!
Salve Pirandello, salve minha depiladora e salve as infinitas possibilidades do ser! Não deu pra vomitar, naquele intervalo de tempo, todo o sofrimento já engolido e não digerido por mim durante anos de vida mas, só em considerar essa possibilidade, garanto que suavizou muita coisa aqui dentro. Depilada por fora e por dentro, ao deitar em uma maca que, numa tarde quente de novembro, foi transformada em divã da melhor qualidade...







quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O Paciente



Esse mês fui assistir uma peça baseada no texto de Steve Sam Lipsyte, traduzido para o português como: O livro de ítens do paciente Estêvão, adaptada por Felipe Hirsch. A apresentação tinha cinco horas de duração, com vinte minutos de intervalo. Confesso que sempre fico muito na dúvida quando me deparo com essas propostas extensas refletindo se todo esse “debruçamento” sobre o tema é realmente necessário.

A peça conta a história de um paciente que vai fazer um check-up de rotina e descobre que sofre, segundo seus médicos, de uma doença incurável e ainda desconhecida. A única certeza que eles têm, é que Estêvão morrerá. O tom cômico permeia os diálogos, suavizando um tema indigesto: Ok, podemos morrer de doenças. Mas podemos também morrer de vida? Uma pergunta que, por si só, necessita de mais de cinco horas de reflexão resolvendo a minha dúvida inicial e provocando um olhar mais apurado sobre escolhas e caminhos.

Durante a apresentação a sensação é a de que a nitidez das nossas referências vai desaparecendo, transformando-se em nuances. Um momento genial para exemplificar é uma cena onde Estêvão conta que tudo na vida se resume nas duas primeiras frases que falou na vida: “Quero barco!” e “Chega!”




O tom é irônico e vem seguido de um suspense e da expectativa de que algo muito profundo seria dito naquele momento. Um  insight do diretor para abalar intencionalmente as certezas de então. Essas duas frases, brilhantes na minha opinião, não seriam efetivamente a síntese  das nossas tentativas de experimentação e de dosagem de medidas confortáveis que nos redimam dessa montanha russa que é o viver? Não são nos pequenos desequilíbrios, nos desconfortos da vida que atingimos o equilíbrio?

Um detalhe que me chamou muito a atenção foi a presença de um aquário no cenário, presente em todas as cenas: ora no centro do palco, ora em um canto qualquer, mas sempre presente. Pequenos peixes circulando em atividade constante e, ao mesmo tempo, contidos naquela realidade imposta. O universo cabendo em um aquário.  Essa percepção potencializada pela afirmação de um dos personagens (“O mundo já calculou o valor potencial da felicidade”) demove mais certezas e propõe um mergulho nas relatividades da vida. A qual aquário pertencemos, afinal? Será que dá para ousar enxergar e até mesmo viver além do que nos impuseram ou do tanto que nos submetemos?

Ao final da peça ficou claro para mim que as cinco horas são realmente necessárias. Não tanto para o desenvolvimento do tema, mas para propor uma experiência, uma contemplação do tanto que negamos no cotidiano por medo, “ausência de tempo” ou incapacidade de enxergar. E a grande certeza que tive de toda essa experiência é que, independentemente dos caminhos trilhados, com os erros e acertos que os validam, morrer de vida é a única coisa que não dá para aceitar...